O Corpo em Psicanálise por Neusa Santos Souza

   Para a psicanálise, não se nasce com um corpo. O corpo, para a psicanálise não é um dado natural: é algo que se constrói, algo que se inventa.


   Dizer isso é dizer que o corpo que interessa à psicanálise não é o corpo biológico, esse sim um dado primário. O corpo com o qual a psicanálise opera é uma imagem – uma imagem feita de palavras e de afetos.


   O dicionário diz que o corpo é uma unidade, um conjunto. 


   A psicanálise nos mostra que o corpo como unidade não está aí de partida, não está aí desde sempre, não nos é dado de bandeja: é unidade a ser construída.


   A psicanálise nos diz que, no caso dos seres falantes, para se ter um corpo não basta se ter um organismo. É preciso mais. Para se ter um corpo é preciso inventá-lo, é preciso construir uma imagem, imagem esta que vai fazer desse organismo um corpo unificado.


   É que, a princípio, reina o caos, as pulsões parciais, a sexualidade anárquica e fragmentada. Para fazer desse caos uma estrela bailarina é necessário um trabalho, “uma nova ação psíquica”, diz Freud. Essa nova ação psíquica é o que Lacan teorizou como a experiência do estágio do espelho – experiência através da qual o corpo fragmentado será unificado, ganhará uma forma ideal, uma Gestalt, à função da imagem especular.


   Lacan descreve a experiência do estágio do espelho como a descoberta feita pela criança de mais ou menos um ano e meio ao se ver no espelho. Essa criança, que é um ser prematuro, que ainda não conquistou uma unidade no plano motor, que é um corpo despedaçado, essa criança faz a descoberta de uma unidade, de um corpo unificado. Ela se vê no espelho, exulta, ri, cheia de alegria. Sua imagem no espelho lhe antecipa uma unidade, uma totalização que vai confirmar sua percepção, que vai dizer: “Sim, você tem um corpo”.


   Esse corpo unificado, esse corpo do qual dizemos “meu corpo”, é o suporte do nosso eu, é o nosso próprio eu enquanto unidade psíquica. Nessa medida, eu e corpo são correlatos, se superpõem, o que nos permite dizer, com Freud: o eu é eu corporal.


   Para a psicanálise, dizíamos, o corpo não é um dado primeiro. Nem o corpo biológico, nem o corpo erótico. Nem o corpo anatômico, nem o corpo investido de libido e desejo. Para a psicanálise, o dado primeiro é o corpo simbólico, a linguagem. Para Lacan, o primeiro corpo é a linguagem – o corpo simbólico. O corpo simbólico é um corpo sútil, incorporal, que, ao se encarnar no organismo, nos dá um corpo. Ou seja, o corpo que dizemos nosso, o chamado corpo-próprio, é a linguagem que nos dá esse corpo.


   Posso dizer isso de outro modo: o corpo é um fato dito. Para a psicanálise, só há fato do dito. É nesse sentido que Lacan pode afirmar que o animal não tem um corpo, que o animal é um organismo. Para a psicanálise, onde não há dizer nem ditos, não há corpo.


   Que nosso corpo nos seja atribuído pela linguagem faz dele um corpo esquisito, diferente de qualquer outro corpo vivo. 


   O corpo do ser falante é um corpo afetado pelas palavras, é um corpo que desobedece à lógica cartesiana, é um corpo necessariamente vinculado ao pensamento. E nessa condição o corpo se faz enigma, o corpo interroga a psicanálise.


   Seja na neurose ou na psicose, seja na histeria, na esquizofrenia ou na paranoia, o corpo está sempre aí a interrogar a psicanálise e o psicanalista.


   A histérica foi a primeira a interrogar o Freud. De modo dramático, ela apresentava sintomas no corpo – paralisias, dores, cegueiras, desmaios, contraturas – mas, seu corpo era diferente: um corpo rebelde que não se curvava ao saber médico e não obedecia à anatomia. O corpo da histérica desconcertava os especialistas: nenhum deles dava conta de seu sofrimento, já que seus sintomas não obedeciam nem à anatomia, nem ao saber dos livros. Os sintomas da histérica obedeciam a outra lógica, outras leis. O corpo da histérica obedecia não a determinações orgânicas e sim determinações simbólicas. Seus sintomas eram metáforas escritas no corpo, correspondiam a expressões linguísticas, eram expressões de fantasias e desejos inconscientes.


   Freud encontra em suas primeiras histéricas os melhores exemplos desse corpo que sofre de uma fala recalcada.


   É famosa a frase de Freud sobre as histéricas: “As histéricas sofrem de reminiscências”. Trata-se aqui de reminiscências inconscientes, lembranças recalcadas que insistem em se manifestar. São reminiscências silenciadas que insistem em falar, que não se calam. Impedida de falar, a histérica fala com o seu corpo, continua a falar por outros meios.


   Frau Elizabeth, por exemplo, aquela paciente de Freud que desejou ocupar o lugar da irmã ao lado do cunhado, sofria de uma paralisia que neurologista algum conseguia tratar. Sua paralisia condensava um conflito que dizia ao mesmo tempo: “não posso andar, me carregue nos braços”, e “não posso andar, não tenho o direito de dar mais um passo”. Desejo e censura, desejo e proibição a esse desejo compunham o texto dessa paralisia corporal mas não orgânica. As histerias revelaram a Freud um outro estatuto do corpo: um corpo diferente do organismo, um corpo erótico, um corpo feito de desejos, fantasias e censuras inconscientes. As histéricas revelaram a Freud o corpo-próprio ao ser falante, o nosso corpo, o corpo de cada um de nós.


   E na psicose? Como é o corpo na psicose?


   Diferentemente da neurose, em que o corpo é o palco no qual se encena o conflito, na psicose o corpo é o lugar invadido pelo Outro.


   Na psicose o corpo deixa de ser esse lugar único que se opõe e se separa de tudo o mais que existe. Aqui o corpo se mistura com objetos, o eu se mistura com o não eu: a fronteira entre um e outro se rompe. Na psicose o corpo é vivido como esse lugar, essa fortaleza frágil que o Outro quer tomar de assalto. Daí as vivências de estranhamento, despersonalização, sentimentos de invasão e captura. Na psicose, corpo e pensamento são alvo da cobiça do Outro. Os sintomas corporais do psicótico são alvo da cobiça do Outro. Os sintomas corporais do psicótico denunciam a gula, a cobiça, a ambição desmesurada do Outro. Na Psicose, o Outro se revela em sua maldade, em sua vontade de gozo – vontade de gozar, usar e abusar do corpo do sujeito. Em seus sintomas corporais, o psicótico denuncia: o Outro quer meu corpo e minha alma. Ele quer meu corpo e meu pensamento. No limite, o Outro quer minha vida e meu ser. Em sua ambição desmedida, o Outro quer tudo de mim, me exige tudo, inclusive a vida. E, se eu não dou, ele me invade. Se não dou, ele toma de mim.

 

  Em suas falas atormentadas, os psicóticos revelam essa maldade intrínseca do Outro, maldade da qual eles se sentem objeto: “O ar está parado, as árvores não flores, as mulheres grávidas não têm filhos, para que a vida continue é preciso que eu morra”, dizia um paciente.


   E um outro:

   Tem muita gente que fantasia em mim, gente viva, gente morta…

   Malditos parasitas, eles transformaram meu rosto, comem por mim, bebem por mim, comem minha comida, bebem meu leite, beijam minha garota por mim, se metem no meio… Eu sei que é impressão, mas é real demais.


   O corpo na psicose é um corpo aberto, poroso sem defesa contra o Outro e suas palavras – sem defesa contra a linguagem.


   Mais do que ninguém, o psicótico sabe que as palavras podem ser farpas afiadas, armas que ferem e matam. As palavras do Outro costumam atingi-lo em cheio, invadi-lo, desorganizá-lo. Elas são sentidas como coisa nefasta, coisa ruim. E pesam. Têm peso de injúria, massacram, são uma verdadeira devastação.


   Um exemplo célebre, caro a Deleuze, é o de Wolfson, esquizofrênico americano que se fez notável graças à publicação de seu primeiro livro, Le Schizo et les langues,  em que descreve toda uma série de procedimentos linguísticos e não linguísticos para se defender de sua língua materna, “esta maldita língua, o inglês”, como ele dizia.


   A princípio ele tenta fechar o corpo, literalmente: tampando os ouvidos com os dedos ou com o walkman, e tampando a boca com excesso de comida. Depois, parte para estratégias mais sofisticadas, procedimentos linguísticos propriamente ditos, como a tradução automática.


   Wolfson se dedicou a estudar línguas estrangeiras para traduzir automaticamente as palavras ouvidas na língua materna. Ele, que se autodenominava “o estudante de línguas esquizofrênico”, não suportava a língua materna, nos dois sentidos: não suportava o inglês e não suportava sua mãe falando. Cada palavra que ela dizia o feria de morte. Cada palavra dita por sua mãe penetrava em seu corpo, ecoava em sua cabeça, martelava em seus ouvidos. Cada palavra de sua mãe lhe provocava reações agudas, reações de dor, que só eram interrompidas se ele conseguisse, rápido, converter as palavras inglesas em palavras estrangeiras – único modo, dizia Wolfson, de “destruí-las no espírito”.


    Na psicose, o corpo é alvo de manipulação, de interferências, de influências por parte do Outro e da linguagem. O Outro, com suas palavras e silêncios, com seus meio-dizeres e insinuações, com seus comentários nas entrelinhas, com seu timbre próprio, com seu modo estranho de acentuar as palavras, perturba a paz e o sono do psicótico, invade seu corpo e seus pensamentos, é causa de sentimentos de perseguição. Lembro-me de uma paciente que veio se queixar e me pedir providências contra as injúrias de que era objeto: “Está todo mundo me sacaneando, doutora. Eles ficam dizendo ‘maracujá’, ‘cuador’, ‘feliz ânus novo’…”


   Muitas vezes, na psicose o corpo é vivido como coisa, coisa deserotizada, dilacerada, corpo-carne, carne-sangue-ossos, carne em putrefação, cadavér. É o que Schreber e Arthur Bispo do Rosário, dois paranoicos geniais, dizem do louco. Schereber dizia ser um “cadáver leproso conduzindo um cadáver leproso”; Bispo do Rosário se definia como um “homem vivo guiado por um morto”.


   O psicótico, com sua extensa gama de sintomas, põe no centro da discussão psicanalítica uma outra dimensão do corpo, ainda não assinalada aqui: a dimensão real do corpo.


  Enigmática por excelência, a dimensão real do corpo não se deixa apreender nem pelo imaginário, nem pelo simbólico; nem pelo fascínio das imagens, nem pelos desdobramentos do significante; mas se faz bem presente por seus efeitos, e se impõe como determinante de nossos desejos, fantasias e sintomas.


   O real do corpo, em psicanálise, está especialmente ligado à pulsão e à sua satisfação, em termos de Freud, ou ao gozo, em termos de Lacan, esse estado de tensão inconsciente, mais além do prazer e do desejo, que permanentemente nos habita e do qual só temos notícia através do mal-estar que caracteriza todo ser falante e que o lança tanto nas vias da angústia quanto nas vias do desejo. Vias tortas, diriam uns; caminhos certeiros, diriam outros, e todos eles acertariam: é que a dimensão do real se situa mais além de certo e errado, mais além de prazer e desprazer, mais além de bem e mal. Na dimensão do real estamos todos mais além de bem e mal.


Imagem: A substância do corpo é o gozo (Arte Andreia Freire / Foto Harold Edgerton / Reprodução)


Este texto O corpo em Psicanálise é um texto inédito retirado do acervo pessoal da autora e publicado postumamente na nova edição do livro Tornar-se Negro da editora Zahar.

Posts mais visualizados

Edit Template

2022 © Joel Lopes